
Imagem de Mira Nedyalkova
Literatura | Poesia | Ingrid Carrafa
Ingrid Carrafa
Foram dez horas de sofrimento pra ser parida.
Nasceu roxinha, quase natimorta,
Com os olhinhos miúdos.
Emburrada.
Encarou o médico e suspirou.
Havia nascido com a sina das pessoas que nascem pra dentro,
Avessa à vida,
Sem paciência para existir.
Transitava entre a beleza do efêmero
E a calmaria de uma tragada de cigarro.
Quando mais velha e mais amarga,
Mergulhou em si:
Uma passagem sem volta para lugar nenhum
***
Diante do espelho, a mulher madura que me observa é triste.
Sou uma cínica com túmulos nos olhos,
Consumindo afetos como consumo cigarros.
Meu coração é uma loja que pediu falência
E está em liquidação nesse domingo.
O preço a pagar é alto quando se barateia sentimentos.
***
Sendo contraindicação
nenhum remédio dá jeito
Sou um terreno baldio usado para fins indevidos
Acumulei por anos lixo sentimental
Lembranças e corpos desovados
Anseio por alguém que ignore toda essa desordem
E tope dançar sobre cacos de vidro
***
Eu sou o ebó despachado na encruzilhada com pedidos de amor
sou os piolhos da cabeça de Rimbaud
o ópio de Baudelaire
a paranoia de Piva
Eu sou o tremor das pernas ao se aproximar o orgasmo
e a marmita estragada dos presídios superlotados
sou o dar de ombros da puta desenganada
e os boquetes desalmados
Eu sou a ulcera sangrando lentamente
Sou o pus de uma sutura mal feita
Sou a tuberculose que matou João da Cruz e Sousa
Eu sou o empréstimo feito para bancar a publicação do livro
os bens vendidos
o nome sujo no serasa
Eu sou a solidão que calou Florbela Espanca
sou a boceta querendo ser fodida
o cuspe e as chicotadas em uma sessão de sadomasoquismo
eu sou
eu
sou
o cataclismo de um corpo afetado pela poesia
***
As palavras me atravessam
Eu sou cheia de buracos
***
Por enquanto
Tem sido somente paixões efêmeras
Febres passageiras
Meu Éden particular
Guarda o fruto proibido para aquele que tem fome
Assim como eu
Enquanto isso vou sobrevivendo
Como uma aranha caranguejeira
***
A fera que mora em mim
Não adormece nunca
A fera que mora em mim
É desembestada
Sedenta de pessoas perversas
E desejos ferozes
A fera que mora em mim
Devora minhas tripas
Enquanto eu escrevo poesia
Escrevo
Escrevo
E sou rasgada pela vida
Eu não tenho medo de morrer
Nasci sem pele
***
A metamorfose do corpo enlouquecido pela dança
Lá fora um par de olhos é comido por urubus famintos
Rasga-se a alma nas trevas...
O som alto continua tocando Billie Holiday
Autora

Ingrid Carrafa nasceu em Vitória (ES) em 1989.
Atriz e poeta.
Tem poemas publicados em antologias e revistas literárias brasileiras.
Em 2017 participou de um projeto português em conjunto com artistas-mulheres de vários continentes.
E foi tema de um TCC.
Publicou os livros de poemas "Entre rosas e abismos" (2015), pela editora Penalux; "Não joguem pedras na Geni" (2016), publicação independente.