Devia de haver um lugar debaixo do silêncio,
onde fosse possível permanecer
olhando a forma das palavras buscando-se
enquanto o nosso corpo declina.
Literatura | Poesia | Sândrio Cândido
Imagem de Edward Honaker
Sândrio Cândido
"A palavra é capaz de escrever o real e sobrevive aos homens. Não nos relacionamos pelas palavras, mas com as palavras. As palavras permitem que a memória retenha as coisas ao nomeá-las, atribuindo-as um valor"
Maria Rita Kehl
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I
É preciso dar tempo ao tempo
dizem por aí.
Mas como darei o que não tenho?
é o tempo que me tem!
A ele pertenço.
Feito cordeiro manso avanço,
à espera do sacrifício
rezo:
Recebei-me sempre no teu silêncio
fazei de mim morada
comei o meu corpo
a palavra que em mim se fez
memória e carícia.
És imbatível nos teus desígnios
colherás em mim a fome que tanto te inquieta.
A ti pertenço-
Só não destrua o meu nome.
***
II
Devia de haver um lugar debaixo do silêncio,
onde fosse possível permanecer
olhando a forma das palavras buscando-se
enquanto o nosso corpo declina.
Só então escreveríamos!
Depois de contemplar a simbiose das palavras.
Devia de ter um espaço de não dizer.
Um lugar debaixo de tudo o que seja ausência.
Lá encontraríamos a outra mão,
aquela capaz de erguer dos monturos
réstias de delicadeza.
Devia de haver também,
no interior de toda palavra pronunciada,
um lavrador.
E quando em fala a palavra se transformasse,
seria ele capaz de capinar
os sentidos da linguagem.
Contudo,
não há nada!
exceto o nosso desamparo.
Estamos sós com a linguagem.
Reféns do verbo que alimentamos
somos na palavra incinerados.
***
III
no princípio de tudo estava a orfandade
//os antigos não diziam o nome de deus
creiam que no nome estava Deus//
éramos quartos imersos na música
derradeira forma de habitar a solidão
// há também os que comem orgasticamente
a carne de um deus ressuscitado//
na sombra do abraço existíamos
comento das beiradas incicatrizáveis
// outros se prostram sob o crepúsculo
ajoelhados sobre o medo//
então a música retirou-se
fez-se um silêncio do tamanho do nada
//há também os que se vestem de branco
e dançam embriagados pelo horizonte//
e do silêncio brotaram os humanos
feito feijões dentro da vagem
// outros abandonam o corpo
e cultivam no olhar a paisagem indecifrável//
estourou-se o crepúsculo
e os humanos começaram a errar no mundo
// são aqueles que se fazem monges
eternos breviários orvalhados//
em busca do princípio caminharam
carregando no centro o desejo da raiz
// também os antigos praticavam o sexo
numa liturgia de orgasmos//
é a fome insaciável do gêneses
estranha vontade de escapar à orfandade
// e há os que em nada creem
luminárias plantadas no centro do nada//
haverá no fim uma chuva
que regue em nós a eternidade?
***
IV
Os que se vão
deixando em nós os girassóis molhados
por uma chuva invisível.
Aqueles que abrem no meio de nós
um buraco deserto,
por mais cheias que haja
água alguma jamais
será capaz de preenchê-lo.
Os que nos partem
levando para dentro de nós
os crepúsculos.
E abrem em nossos violões
vazantes melancólicas,
plantam no nosso peito
a saudade.
Aqueles que se transformam
em nomes impronunciáveis,
fotografias fincadas nas paredes,
canções inesquecíveis.
Os que nos fazem doer à tarde
e estiram em nosso coração
uma rama de arames farpados.
Os que tomam nossa mão
no meio da noite
e nos levam a escrever
algo capaz de peneirar o pranto
a eles,
os que ganharam a distância
um abraço.
Sândrio Cândido é poeta, natural de Minas Gerais, atualmente vive na cidade de Cali (Colômbia).
É graduado em filosofia (Faculdade Vicentina) e estudante teologia (Universidad católica Lumen Gentium).
Publicou o livro Epifania (Editor Patuá, 2014), e tem poemas publicados nas revistas Germina, Mallarmargens, entre outras.
Trabalha com a pastoral Afrocaleña, desenvolvendo a relação entre espiritualidade e identidade afro-colombiana.