Sete poemas
místicos
sem deus
Imagem de Rachel Bellinsky
Literatura | Poesia | Teofilo Tostes Daniel
Teofilo Tostes Daniel
1. No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.
2. Ele estava no princípio com Deus.
3. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.
4. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.
5. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.
Bíblia, João 1:1-5
Alma barroca
Eu gosto quando volta a ser barroca
a alma que nem mesmo sei se tenho.
Os paradoxos pesam sobre o cenho
e as heresias passam pela boca.
Eu gosto de me ver imerso em louca
dualidade pregada ao Santo Lenho.
Das crenças imanentes donde venho
a fé parece sempre ausente ou pouca.
Sou grato pelos pórticos e ogivas
que mantêm sempre lépidas e vivas
as sensações do corpo. Grato a quem?
No século meu deus está perdido.
Cada ídolo meu já foi carpido,
mas cada um deles inda se sustém.
***
Todo dia é fim do mundo
I – Armagedon
É todo dia que ocorre
a luta do fim dos tempos.
Quando bombas ceifam vidas
ou lamas tóxicas matam
as águas de vários rios.
Sim, o juízo final
também acontece agora.
Percebo que toda morte
inaugura em si o tempo
propício ao apocalipse.
II – Gênesis
No sem-fim desse universo
que talvez seja espelhado
ou até caleidoscópico,
um deus qualquer faz a luz
que sai dum buraco negro.
A cada vida que surge,
o princípio de algum verbo,
no próprio dia primeiro
de alguma criação qualquer,
abre um eterno retorno.
***
Sentir deus
Vai, homem de muita fé!
Cria no céu uma plaga
e sonha com a ideia vaga
de um dia fincar o pé
no paraíso bendito.
Busca em deus as tuas asas,
já que tu sempre te atrasas
ao andares no infinito.
Mas delira enquanto podes,
pois quando as primeiras odes
da sina mais certa e obscura
vierem te conduzir,
o deus tu não vais sentir
lá dentro da sepultura.
***
Poiésis
ei, poeta! me conte sobre suas certezas, suas convicções poéticas?
(Carla Diacov)
Repara no corpo
das palavras empilhadas
verso a verso,
estrofe a estrofe –
ali dentro reside
o avesso de um aedo órfico.
Poesia é a dança
de um deus niilista
despindo-se da (in)utilidade
das palavras dos homens.
Para o movimento, os sons
delineiam sentidos.
Ouve a melodia silente
ressoando nas formas das letras
e nos entres das linhas.
Ela te convoca
para uma contradança
de fremir as carnes.
Poesia é o cosmo
que se engendra quando
aquele que será
diz: “faça-se”!
E na lucilação da palavra
o corpo se a(s)cende.
Poesia é atirar-se no abismo,
aceitando esta ética do acaso
a tecer um caos de formas.
Ao erguer e desmanchar paradoxos,
a criação vive
a incerteza da página em branco.
***
YHWH
(para Sândrio Cândido)
Chamo a Deus
No semblante amorfo da música.
(Hirondina Joshua – “Ignoto Deo”)
Meu sagrado
não tem nome
nem forma,
desconhece teologias
e templos.
Seu altar é erguido sobre o corpo
da dúvida.
Invoco as incertezas
para louvar o que não sei.
Meus deuses se irmanam ao mistério
do impronunciável.
São fugazes como hipóteses e colcheias.
Ressoam na beleza, na dissonância
ou num acorde imperfeito e menor.
Minha divindade
é aquilo que sou:
um cosmo parido do caos.
Ela se alimenta à insaciedade
do que sinto e penso,
e goza os espasmos efêmeros
de nossa finitude.
Gozo santo
antes do silêncio
— ou simplesmente vida —
é um dos nomes disso
que adoro.
A fecundidade de cada palavra
ejacula a existência de um deus.
Encontro a transitoriedade do divino
no sorriso ou no abandono,
no júbilo ou na lágrima.
Acendo velas
e esboço litanias
para o que se esconde
atrás da amplidão do horizonte.
Cultua-se pela agnosia
essa divindade multiface,
engendrada plural e corpórea,
que faz dançar a poeira e o tempo.
Dela, só se aproximam,
por um impalpável êxtase,
os hesitantes.
Os impronunciáveis nomes do que venero
se afugentam de dogmas
e se velam
atrás de manhãs
ou de epifanias,
onde comungo meu culto incréu
com místicos e hereges.
***
Se eu acreditasse num deus
se eu acreditasse
num deus
não seria no seu
que se vinga para sempre
da ignorância
e da fragilidade humanas
que demanda louvores uníssonos
ou destina quarenta virgens
para serem eternamente
estupradas por assassinos
que explodem pessoas aleatórias
e o próprio templo-corpo
em nome da pureza da fé
que é menos capaz
de acolher o múltiplo e o diverso
do que a própria humanidade
que não ri condescendente
das estranhezas do comportamento humano
como pais riem
dos pensamentos pueris
de seus filhos pequenos
se eu fosse tocado pela graça
de crer em alguma coisa para além
da agnosia
minha divindade seria
mais mãe do que pai
mais Gaia do que Yahweh
mais terra do que céu
mais água do que fogo
mais fecundidade do que ascese
mais mística do que dogma
mais andrógina do que máscula
mais amor
do que o amor condicional
dos deuses
em que jamais fui capaz de crer
***
A doma do caos sonoro
3 Laudate eum in sono tubæ; laudate eum in psalterio et cithara. 4 Laudate eum in tympano et choro; laudate eum in chordis et organo. 5 Laudate eum in cymbalis benesonantibus; laudate eum in cymbalis jubilationis.
(Psalmus CL, vv 3-5)
perfeito maior
acorde soando inaugura
a tonalidade
ou sua
relativa menor
modula o tom
e leva para outros
cantos
outros cânticos
a música
é uma égua bravia
que se pode montar
melisma cromático
desliza sons
a voz do instrumento
de carne
madeira
corda
ou metal
arpeja
o tema
a coda
o trítono
a resolução
o resultado
em sua inapreensível fugacidade
percute um mistério
que silencia o dentro
se há um deus
ele soa
e só
Teofilo Tostes Daniel é poeta e escritor nas horas cheias. Nas horas vagas bendiz o ócio, lê, canta no chuveiro, nas aulas de canto e em saraus.
Nas plenas, conversa com amigos, reúne-se em família, brinca com suas cachorrinhas e é feliz com sua esposa. E em horário comercial é analista de comunicação do Ministério Público Federal.
Nasceu a tempo de aproveitar os últimos seis meses dos anos 70, o que talvez justifique alguns traços de sua personalidade.
Publicou o livro de contos “Trítonos – intervalos do delírio” (Patuá, 2015) e “Poemas para serem encenados” (Casa do Novo Autor, 2008). Participou ainda, com contos, poesias e artigos, de coletâneas, e revistas literárias e culturais. Faz ensaios abertos com palavras em https://teofilotostes.wordpress.com